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A mostrar mensagens de julho, 2011

Coisas de ler #2

   Raramente me cruzo com livros tão espantosos, e por isso não podia deixar de mencionar esta compilação surpreendentemente caleidoscópica (ou camaleónica), mas ao mesmo tempo de uma inabalável unidade, sustentada por raras competências de elegância e precisão.     Intitula-se Mulher ao Mar e foi dado à estampa pela Mariposa Azual. A autora é Margarida Vale de Gato, excepcional tradutora que agora se estreia na poesia.     Aqui fica um dos poemas:  Mutilação Se por fora não pareço oca dentro podre ao centro estou. Sem querer armar-me em modernista tenho Alturas em que experimento a lúcida percepção quase materialista e táctil do progresso da loucura sou tal película sobre- posta sobre-exposta, precipitado cálculo de abertura - aí o pânico a insónia eu cindida. Só escrever me alivia um pouco e dantes inclusive consolava; agora é mais um corte que sob a pele se exerce a prevenir a coisa mais violenta que me pulsa na cabeça e compulsivamente desta forma se escoa mas não seca nu

Cinema #8

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Banda sonora #8

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Em Portugal há isto, e depois há o resto.

Uma pergunta

    Desvendar os segredos dos cigarros e dos compartimentos a meia-luz. E ainda dos cotovelos - são coisas de decifrar, os cotovelos. Mas, sobretudo, da pose quieta, tão quieta.     Em que pensam os homens e as mulheres que, na solidão da noite, espiam a rua através da janela?

Coisas de ler #1

    «- O tempo a definhar. Eis o que sinto aqui - disse ele. - O tempo a envelhecer devagarinho. A ficar imensamente velho. Não dia após dia. Trata-se do tempo profundo, o tempo histórico. As nossas vidas a mergulhar no passado longínquo. Ora aí está o que nos rodeia. O deserto plistocénico, a regra da extinção.     Pensei em Jesse a dormir. Ela fechava os olhos e desaparecia, eis um dos seus dons, pensei, mergulha imediatamente no sono. Todas as noites o mesmo. Dorme de lado, enroscada, embrionária, mal respirando.      - A consciência acumula-se. Começa a reflectir acerca de si mesma. Há aqui algo que me parece possuir um carácter quase matemático. Dir-se-ia que existe uma qualquer lei da matemática ou da física que ainda não desvendámos, segundo a qual a mente transcende toda a convergência para o seio de si própria. O ponto ómega - disse ele. - Seja lá qual for o significado que esta expressão pretende veicular, se é que possui significado algum, se é que não se trata de um caso em

Abraço

    Estava às portas da morte e queria despedir-se daqueles que mais amava.     Desejava abraçá-los: naquela circunstância, como podia ele conter o ímpeto de semelhante gesto? No entanto, por causa da intensidade que o caracterizava (mais decifrável pela física que pela medicina), tinha a capacidade (ou a maldição) de com o toque transferir para o outro o pensamento que nele ocupasse mais espaço. Era esse o motivo pelo qual vivia sozinho há muito anos - a convivência com ele era insuportável, senão mesmo impossível.      Antes de abraçá-los, queria convocar pensamentos belos, porém era a ideia de morte que lhe ocupava cada recanto da mente; a morte em todas as suas dimensões.      Hesitou.     Os entes queridos, conscientes da sua peculiaridade, mas também (e sobretudo) conscientes da dificuldade do momento, decidiram-se a abraçá-lo. Tentou esquivar-se, mas não conseguiu - a invalidez e uma cama não lhe ofereciam propriamente as melhores condições.    De modo que foi abraçado. E, no mo

Banda sonora #7

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Cinema #7

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Buraco da fechadura

    Espreita as tragédias do mundo pelo buraco da fechadura. No conforto do lar, não corre riscos, pensa. Porém engana-se - o mundo avança e deixa-o para trás, esquecido como a poeira que não se levanta do chão. No conforto do lar não corre vento, e a camada de poeira cresce a cada dia. Já respira mal, mas, ainda assim, não resiste ao impulso de espreitar as tragédias do mundo pelo buraco da fechadura. Ele, como muitos, desacelerará o mundo até à estagnação. E, nessa altura, as tragédias do mundo bater-lhe-ão à porta. O que fará ele então?