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A mostrar mensagens de 2015

A vela no centro

Noutros tempos, mataria um por um Uma vela a apagar-se de cada vez Mas agora inalo em vez de soprar Porque o fogo aquece o cheiro E tenho os sentidos engelhados de frio Noutros tempos, mataria um por um Mas agora agrada-me ver a vela arder A do centro A maior Veja-se como se extingue pouco a pouco Sem que seja necessário soprar Ou desengelhar o corpo à força de ais Só os imbecis não gostam do cheiro da cera esmagada pelo fogo 

Uma estrela negra

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O nascimento de uma personagem

Esta noite matarei um homem. Maltrata a mulher e a filha, é traficante de rua. Um pulha menor, mas, ainda assim, um pulha. E isso basta-nos. Um desgraçado, muitos dirão, mas nós vemos as coisas pelos olhos da matemática: comparamos desgraças pelo tamanho, analisamos a extensão de quem a inflige e de quem dela é alvo. O fundamento da nossa moral é esse: a medição do infortúnio.

Inícios que agarram pela goela

«Matámos cães. Não por acidente. Foi de propósito, e chamámos a isso a Operação Scooby. Como eu gosto de cães, fartei-me de pensar naquilo. A primeira vez foi por instinto. Ouço o O'Leary dizer "Meu Deus", e vejo um cão esquelético lamber sangue tal como nós tínhamos estado a lamber água de uma tigela. Não era sangue americano mas, mesmo assim, estava um cão a lambê-lo. E acho que aquilo foi a gota de água. A seguir, abrimos a caça aos cães.» Phil Klay, do conto «Fim de missão», incluído no livro Desmobilizados Tradução: Maria do Carmo Figueira Edição: Elsinore

Este mundo não é para os verdadeiros

Se abraçares a verdade — a essencial, que é a verdade do eu —, serás esmagado a cada dia até à extinção. Mas — eis o importante —, depois da tua morte, serás tu o lembrado.  

Da perspectiva

«Duas Anedotas 1. Um homem está sentado na margem de um rio quando de súbito a água começa a subir. A sua esposa e a sua amante são ambas levadas pela corrente. Quem é que ele deve salvar? A esposa. (Porque a sua amante compreenderá sempre.) 1. Um homem está sentado na margem de um rio quando de súbito a água começa a subir. A sua esposa e a sua amante são ambas levadas pela corrente. Quem é que ele deve salvar? » A amante. (Porque a sua esposa nunca compreenderá.) » Jenny Offill, Departamento de Especulações Tradução: José Miguel Silva Edição: Relógio D'Água 

O tradutor

O tradutor não tem tempo O tradutor é criticado por não ter tempo O tradutor explica que ser tradutor é não ter tempo Mas quem o critica não compreende A tradutor não tem sossego Vive com a corda ao pescoço Conta o tempo como o prisioneiro na cela Desejoso de concluir a empresa Sem esbarrar no prazo Para receber o que lhe paga o buraco (Sim, para quem não sabe, o tradutor vive num buraco)       O tradutor trabalha doentiamente Sim, outra verdade Mas de que serve? De nada, como quase tudo no mundo do tradutor Mas o tradutor não reclama essa atenção Modesto como é, reclama somente a reserva Porque (nova verdade) O tradutor é invisível por defeito e definição E isso é do seu agrado Só não é do seu agrado Ser falado apenas naquele instante tão isolado Em que usou a palavra desviada Como se previamente a isso não houvesse uma história de mil sucessos   É este o perigo da invisibilidade: A falha visível passa a ser a definição de quem a co

Uma possibilidade arriscada

As pessoas são como os livros dispostos numa biblioteca imensa: as que nos reservam o fascínio da descoberta, a generosidade da proposta íntima, o mundo da verdade inteira, estão no recato dos lugares escondidos, serenamente à espera — ou talvez apenas serenamente, sem espera (por sugestão sua, arrisco. Por defeito e natureza , arrisco ainda).  E agora o outro lado, que é tão avesso quanto frente: Quantos se aninham ou ajoelham para descobrir o que se esconde por detrás de uma fiada de livros?   

A verticalidade e a tragédia

Diz-se que o homem deve manter-se vertical face à tragédia, mas se a tragédia não é mais do que a força de ventos caprichosos (quantos dentro dela não o constataram?), o homem convocará (legitimamente) a dúvida fundamental: não será a queda tão mais rápida e violenta quanto mais vertical se estiver? 

A sobrevivência é sempre um passo em frente

A lógica do pássaro (que também podia ser do cinema): recuar, afastar-se, subir, ver de cima, agora invisível por mais que procurem. 

A escrita e a dança

Escrever é desafiar a doença, mas na escrita o desafio é dança, e quem dança abraça, e quem abraça chama, e quem chama apropria-se, e agora escrever é doença. 

y a une distance à rêver entre la peau et l' éternité

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Alexandre Andrade — Quartos Alugados

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Numa altura em que abundam rasgados elogios à «nova geração» da literatura portuguesa (da qual — arrisco dizer — não sobreviverão mais de dois nomes), é com profundo agrado que assisto ao regresso de uma voz verdadeiramente singular.  Falo de Alexandre Andrade, e do seu Quartos Alugados , que viu a luz do dia graças à editora Exclamação e ao Rui Manuel Amaral, que coordena a colecção que o livro integra — a Avesso.   É coisa boa. Muito boa. Bem melhor do que por aí circula com pompa e circunstância, entre capelas e panelas. Tudo está muito bem medido e temperado, descolado de qualquer tendência que não a da verdade que o próprio autor define. E mesmo (ou será sobretudo?) aquilo que aparentemente poderá passar por pirueta não é senão um exercício de sátira.  Eis a proposta: Eu sei isto, sei como manipulá-lo, mas não quero fazê-lo, e, precisamente por isso, faço-o. Como resistir a semelhante provocação? 

Até ver, (de longe) o melhor livro que li em 2015

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Uma visão de existência (feliz?), por Walt Whitman

«Julgo que poderia mudar e viver com os animais, são tão plácidos e        tão independentes, Fico a olhar para eles um tempo infinito. Não se cansam nem se lastimam com a sua situação, Não ficam acordados na escuridão, nem choram os seus pecados, Não me enfadam com as suas discussões sobre os deveres para com        Deus, Nenhum se sente insatisfeito ou enlouquece com a obsessão de tudo        possuir, Nenhum se ajoelha perante outro, nem perante a sua espécie que        viveu há milhares de anos, Nenhum é respeitável ou infeliz à face da Terra.» Walt Whitman, Folhas de Erva Tradução: Maria de Lourdes Guimarães Edição: Relógio D'Água

Uma prece de Flannery O'Connor

«Como é difícil manter uma dada intenção[,] uma dada postura em relação a uma obra [,] um dado tom[,] um dado seja o que for. Neste momento, sinto na minha alma uma certa paz que muito me agrada — não nos deixes cair em tentação. A qualidade das histórias é indiferente. Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Meu bom Deus, deixa-me trabalhar, obriga-me a trabalhar. Desejo tanto poder trabalhar. Se o meu pecado é a preguiça, quero ser capaz de o vencer.» Flannery O'Connor, Um Diário de Preces Tradução: Paulo Faria Edição: Relógio D'Água

O erro do escritor

«Com a associação a estes homens adquiri um novo vício: um orgulho doentio e a convicção insana de que a minha vocação era ensinar pessoas sem saber o que ensinava. Agora, quando penso nesse período e no meu estado mental e no dos que me rodeavam (dá-se o acidente de hoje existirem aos milhares), sinto-me triste, péssimo, ridículo; e crescem em mim os mesmos sentimentos que por certo acometerão aqueles que se vêem internados numa casa de loucos.» Nota: Em virtude da tradução pouco feliz que compromete o sentido original, atrevi-me a alterar alguns vocábulos e construções frásicas (procurando, no entanto, não mexer demasiado no trabalho da tradutora).  Lev Tolstoi, Confissão Tradução do inglês (lamentavelmente torta, ao ponto da ininteligibilidade): Zélia Évora Edição: Alêtheia Editores

A caminho da eternidade e mais um dia

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Contagem

Mil mortes tem o homem. Antes da derradeira. 997, acaba ele de dizer.  Qual será a ordem da contagem?

A velocidade e o espaço

[...] Agora os dias passam depressa e as noites devagar e há menos tempo que lugar. Manuel António Pina, «Como quem liberto de» Incluído em Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança

The Catcher in the Rye

«The mark of the immature man is that he wants to die nobly for a cause, while the mark of the mature man is that he wants to live humbly for one.» J.D. Salinger, The Catcher in the Rye

The Night

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You're the night, Lilah, a little girl lost in the woods You're a folk tale, the unexplainable You're a bedtime story, the one that keeps the curtains closed And I hope you're waiting for me, 'cause I can make it on my own I can make it on my own It's too dark to see the landmarks, and I don't want your good luck charms I hope you're waiting for me across your carpet of stars You're the night, Lilah, you're everything that we can see Lilah, you're the possibility You're the bedtime story, the one that keeps the curtains closed And I hope you're waiting for me, 'cause I can make it on my own I can make it on my own Unknown the unlit world of old, you're the sounds I never heard before Off the map where the wild things grow,  another world outside my door Here I stand I'm all alone, drive me down the pitch black road Lilah, you're my only home and I can't make it on my own You're the bedtime story, the one tha

Terá Beckett razão?

Começo a perguntar-me se o importante é estar atento aos sobressaltos ou levar sempre na mão a terapêutica mala da cegueira.

Snob, com propriedade

Há uma livraria melhor que as outras. Há um catálogo melhor que os outros. Há um livreiro melhor que os outros. Quando entrei, um assombro: os livros pareciam ter sido ali colocados de propósito para mim. Grande parte dos títulos figurava na minha biblioteca privada, mas aos poucos fui deparando com os que nela faltam, como se estivessem à minha espera, acolhendo-me e segredando-me: «Bem-vindo ao teu mundo.»  Falo da Snob — em Guimarães —, gerida (e muitas coisas mais) pelo Duarte: afável, generoso e apaixonado livreiro que conhece os livros como poucos — a frente e o avesso, as lombadas, as badanas, as dobras nos cantos, o papel, o cheiro, a origem, a história:  quem os precedeu e os materializou e lhes deu forma. Sabe as edições, percebe-lhes a importância, preza-as, e (coisa rara) atenta nos tradutores — essas figuras maiores guardadas em pequenas gavetas. Em suma, sabe os livros. E orgulha-se com brilho nos olhos e enlevo na voz da torre que vai construindo: um torre-cas

Os dedos

Quem tanto tempo se cala julga-se morto, e morto deveria julgar-se. Mas por vezes é preciso um sono longo.  O corpo ainda está entorpecido, o espírito também, mas os dedos ainda mexem, e, num capricho de bebé com fome, inquietaram-se e lançaram-se às palavras.  Eis, pois, o mais importante: estar atento à vontade dos dedos.

Um bom conselho para a literatura portuguesa (David Foster Wallace)

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O meu novo vício

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Já os acompanho desde o início, mas este álbum é (como dizê-lo?)... do c******! Beatles versão século XXI.

Profissão ingrata

Que ninguém ouse cair-me em cima por causa da tradução. O revisor é que quis mostrar serviço, e conseguiu os seus intentos — um belo mosaico de disparates para todos os gostos. Repito: não ousem cair-me em cima. Ah, profissão ingrata... 

A tentação das superstições

Se acreditasse em tais coisas, diria que está amaldiçoado. Como não acredito, diria que parece estar amaldiçoado.

Aquela mão

«Fear is the hand that pulls your strings.»

Ternura

Meses depois, o último pacotinho de leite no frigorífico mantém-se intacto.

Agarrar as coisas

Leave it on stand by, and it will pass you by.

A perda a conta-gotas

A perda a conta-gotas larga-te o corpo devagar, como estátua de gelo que agora és, até ao dia em que a água no chão que era o teu espelho deixar de ter olhos que a vejam. Depois, nada haverá para a lembrar - o sol (todos o sabem) ofusca com a beleza todos os seus caprichos.

Há instantes assim, desviados da ordem do mundo

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Roleta russa

Uma variação da roleta russa: traduzir David Mitchell.

Constatação política

Nas ruas multiplicam-se os olhos de quem não desperta do sono. 

Amputação

Qual o nome por inventar para a ausência deixada no órgão que te amputaram?

Coisas bem lá do fundo

Aquela inexplicável convicção de que se vai deixar um risco na superfície da Terra.

É assim que se toca bateria, c******!

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O som e o silêncio

Quando o mundo se cala, não o forces a falar. É no seu descanso que encontrarás a tua voz.

A vida do faz-de-conta

Uma vida pela rama, sem trama nem drama, sossego na cama. Eis a vida de quem não ama.

Fuga

Andaste tão ocupado a fugir da coragem que agora não sabes o caminho de volta. 

As portas da infância

«No one can explain exactly what happens within us when the doors behind which our childhood terrors lurk are flung open.» W. G. Sebald, Austerlitz (edição inglesa) Tradução: Anthea Bell Edição: Penguin Books 

One thing that is clear / it's all downhill from here

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A máquina de erro

O homem é governado por esse hábito ancestral de nunca dar um passo sem ter a certeza de que o movimento do pé culminará em solo firme. Até mesmo quando nele fervilha o impulso de ser feliz antes da altura certa. O cérebro humano é uma máquina que tenta antecipar-se ao tempo e, por isso mesmo, é, antes e acima de qualquer outra coisa, uma máquina de erro.  

Do veneno do medo

«[...] 9457, crises, são apenas crises, 9500, o pai não consegue confiar no filho, nas palavras do filho, o pai só confia no que é capaz de criar a cada momento, mesmo que seja este medo de coisa inexplicável, 9660, na palidez da face do pai formam-se pequenas gotas de suor que o filho limpa enquanto garante que já falta pouco, 9780, o pai sente o coração acalmar na carne onde embate, o sangue abranda numa espécie de tranquilidade espessa, 9894, 9900, as crises vêm e vão, voltam cada vez mais depressa, 9958, vêm e vão, vêm e vão, demoram-se cada vez mais, 10 014, um dia será inútil contar, 10 049, o tempo desenrolar-se-á sem fim e não será possível escapar, 10 118, um dia, 10 134.» Dulce Maria Cardoso, do conto «Pânico», incluido no volume Tudo São Histórias de Amor Edição: Tinta da China 

Do movimento

Observar as coisas por trás para dar o passo em frente.

Silêncio

Chiu. Ouve. Ouve como o mundo se cala.

Coetzee e o ciclismo (e eu)

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Aquele irresistível sorriso, tão íntimo quanto infantil, de saber que entre nós e as nossas principais referências há pontos comuns.

Hertzog, essa criatura tão íntima

«Agora escreveu: Não se trata daquela longa doença, a minha vida, mas daquela longa convalescença, a minha vida. A revisão liberal-burguesa, a ilusão do progresso, o veneno da esperança. » Saul Bellow, Herzog Tradução: Salvato Telles de Menezes Edição: Quetzal

A força do punho

Não ouses desafiar-me, no meu punho está a força de mil lágrimas choradas. Corarás de vergonha quando a pele da minha mão cerrada esbarrar na tua pele fortalecida à custa de mil sorrisos. É que, como por certo já terás percebido, o músculo depende do sítio onde depositas as derrotas e elevas as glórias. Mas também não é caso para chorares. Pronto, cedo-te um sorriso, por caridade.

Da vida

Alguns nascem encontrados para depois se perderem, outros nascem perdidos para depois se encontrarem.  Falta, porém, o essencial: o que define cada um dos adjectivos?

Hospital

Não, não, está enganado. Não é a viagem. O verdadeiro observatório do mundo é a sala de espera nas urgências de um hospital.