KID A

Dez. 1913 Sá-C[arneiro] O que v[ocê] foi fazer; Sá-Carneiro! O que você foi fazer...! Pois v[ocê] não vê que para esta gente o perceber v[ocê] precisa escrever como o Dantas, como o Alfredo da Cunha, como o † ? Pois v[ocê] não vê que para esta gente o apreciar v[ocê] precisa ir fazer conferencias ao Brasil como o J[oão] de B[arros], asnear na capital como o Manso que veio de Coimbra. Pois v[ocê] não vê que para esta gente o elogiar v[ocê] tem que andar a bajulal-os na rua e nos cafés, como fazem os Dantas, os Cunhas, os Sousas Pintos? Já o Mário Beirão cahiu em escrever, e agora ahi vem você e publica-se. Depois — peor asneira — v[ocê] escreve europeiamente! V[ocê] escreve sem vêr a patria e a sua obra, que eu creio genial, esbarra com o provincianismo constante da n[ossa] attitude. Para nós o universo está entre Mesão e Villa Real de Santo Antonio. Ó desgraçado, ó desgraçado!... Isso é bom para França, para Inglaterra, para a Allemanha... Lá os Joões de Ba

Ei-lo em Portugal por boas mãos. Livro maior que faz sangrar. Edição: Colecção Pedante Selecção e tradução: Rui Manuel Amaral

«O conto é uma gaiola à procura de um pássaro.» Franz Kafka

A mãe, os alicerces O filho, o telhado mas Se perderes a primeira, chove-te Se perderes o segundo, ruis

A visão do mundo através da lente de uma máquina: tão estática, tão esférica. A carne que envolve o osso. 

«Here comes the flood, rivers of mud […]»

A breves horas do circo com tenda ou a céu aberto.

Perturbador constatar como, num universo tão vasto, todas as cabeças se regem pela batuta de uma só mão. Vivendo do pavor de morte de não saberem o que fazer se deixadas a sós com o próprio instrumento.

Numa vastidão deserta cor de fogo, Séneca estende uma veste azul a uma mulher nua. A mulher nua estende um livro a Séneca. Ambos permanecem imóveis. 

Procura-se espécie em vias de extinção. Último elemento encontrado a preocupante distância temporal e geográfica. Designação: "Pessoa de palavra". Identificação: Complexa, mas — acredita-se — possível.

Para que uma vida comece, outra tem de terminar. Para que uma vida recomece, muitas têm de morrer.

Contra(mão), contra(peso), contra(luz).

Como um destro a quem pedissem uma carícia com a mão esquerda.

Às vezes, isto: ser-se nuclearmente deslocado. O núcleo sem terra à volta.

Escrever palavras lentas, em frases de lama.

O rapaz lê apressadamente para se aproximar do fim; o velho não passa da primeira página para não se afastar do princípio.

«[...] Se a literatura é o artifício supremo, a tradução é o artifício supremo em segunda mão [...]» Paulo Faria, no prefácio à edição portuguesa de  Suttree , de Cormac McCarthy Edição: Relógio D'Água

Também aqui se começa a mudar de língua. A princípio, tolera-se; e poderá inclusive despertar um certo encanto — o da modernidade.  Mas depois queres falar e ninguém te ouve. Queres caminhar surdo e não tens como. Afinal, só se cala o que o ouvido conhece de cor.   

Do velho especado à porta do prédio o dia todo, ouço dizer: «Que velho estranho.» Ao que o pensamento (nunca a voz) me diz: «Quantas histórias de coragem te farão descer cinco pisos diariamente?»

Diz-se do homem em sofrimento ser inútil ao alívio da dor alheia. Acaso Deus não foi crucificado? 

E depois há aqueles que dizem a verdade.

(Exclua-se por momentos o espírito.) O que não nos mata, torna-nos mais aptos a matar. (Recupere-se agora o espírito, e viva-se no conforto da tradição.)

Família: substantivo abstracto de origem e definição obscuras.

Depois de meses de leituras insatisfeitas, escassas e algo frustrantes, finalmente deparo, quase por acidente, com uma edição brasileira do grande Eduardo Galeano, cujo Memória do Fogo: Os Nascimentos lera com profundo agrado aquando da sua publicação em Portugal. Ei-lo, o livro, tão pequeno na dimensão quanto imenso no que guarda:   

«Fora das telas, o mundo é uma sombra indigna de confiança.» Eduardo Galeano O Livro dos Abraços Tradução: Eric Nepomuceno

Entre o filho e o irmão, optou pelo segundo. «Ao primeiro, deixei as pernas e o coração para andar; ao segundo, faltará o amparo do sangue e da memória até a última morada chegar.»

A cegueira, esse superior estado.

Sobreviver ao que o outro morreria. Praticar o que nenhum outro punho ousaria. Elevar o espírito à altura do que seria.

Um, ao primeiro sinal do terramoto, viu o coração parar. O outro, ao primeiro sinal do terramoto, agarrou a tábua. O primeiro nasceu no amor; o segundo passou a vida a procurá-lo.

A ficção é vida inteira. Mas tal ilusão só existe na medida em que ela se substitui (ou se antagoniza) àquela que, de tão povoada de seres feios, não tem morada para a serena sabedoria.     

Chomsky, cigarros e café. De permeio a existência, essa coisa oblíqua.

Have the right to have a rest, have the rest to have a right.

Ei-las, em abundância: as minúsculas fracções de matéria preta que poluem o chão (pois que dele não se elevam).  Ei-las também: as solas. Que se encarregam de as aniquilar a cada passo. A cabeça, essa, permanece alta.

A sombra que se projecta é sombra apenas. Se reparares bem, é tão tua quanto de ti foge. Não sobrestimes a bidimensionalidade. Pode desaparecer com um simples toque no interruptor.

Como acordar um corpo desperto em tão profundo sono.

Fechar a porta e abrir a janela. A vida é intrusão. E o mundo respira-se melhor de cima.

Tontos os patéticos anões de espírito que não resistem à saída da feia toca.

Viver no avesso da geografia, viver na geografia do avesso.

«There is a crack in everything. That's how the light gets in.» Leonard Cohen, Anthem

A mão dócil que afaga. E que agora esmaga. A mão espiritual — aquela que aniquila com serenidade e consentimento. Ou melhor: que desvia. No espírito, a aniquilação é desvio calmo. A minha mão é como se batesse (ou acariciasse) com ela — uma variação possível daquele homem-Pessoa. 

«Kipling observa que a um escritor é-lhe permitido urdir fábulas, mas está-lhe vedado saber qual é a moral da história.» Jorge Luis Borges, Biblioteca Pessoal Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra Edição: Quetzal

Nobre é aquele que ao sofrimento responde com a coragem do silêncio.

O vidro do aquário racha, cede, estilhaça-se, as almas perdidas deixam de nele nadar em círculos para avançarem em dança de serpente no oceano. 

Podes subtrair todas as peças, mas nunca o lugar onde pertences. Se o fizeres, cederás a um capricho perigoso da linguagem: não estarás a subtrair, mas a subtrair-te.  

Cruzar Amanhãs Sentidos  Amados

Na linha recta atrasa-se o caminho.

Quando sentes o eixo do mundo girar.

Sobram mentiras para contar a verdade. Sobram verdades para contar a mentira.

"[...] toda a ficção é uma impostura; o que interessa é sentir que foi sonhada sinceramente." Jorge Luis Borges Biblioteca Pessoal 

Essa coisa errada de ver o ponteiro na posição desviada.

Quem veste a pele de mártir e a ela se habitua acomoda-se àquele erro tão comum quanto fatal de se definir pelo outro. E se, por revelação mundana ou epifania, perceber o erro, o mundo explodirá nas suas cores reais, as mesmas para as quais nunca treinou a visão. E que provocarão a cegueira, e depois o aturdimento, e depois (mais importante) as questões essenciais. Às quais chegará tarde. O mártir não sabe quem é. Nunca saberá. Começa e acaba onde o outro existe.

Carcomido-consumido-sem-sentido-em-ti-despido

Entre a firmeza do punho e a fatalidade da ponta, andar no gume em bicos de pés.

Eis que a maquilhagem derrete quando faz mais frio.

«Je réclame de vivre pleinement la contradiction de mon temps, qui peut faire d'un sarcasme la condition de la vérité.» Roland Barthes

Caminhar na rua e não ver um rosto. Caminhar na rua e ver todos os rostos. É isto que te diz onde te encontras.  

No dia em que não se te cruze no caminho um único cretino, celebra na medida merecida, pois foi-te dado a provar o raro travo da fortuna.

A tragédia é a bússola que não consente o desvio da nossa morada.