O gesto de ferir e cauterizar a ferida

«Fui amado pela minha mãe. Quero dizer, era o seu preferido. Isso salvou-me. Tenho a meu respeito a ideia, absurda, de que me salvei. De quê? Do inferno, antes de mais nada. A ideia da salvação, na nossa cultura (no nosso mundo), está mais associada a evitar o inferno do que a conquistar o céu. Em que teria consistido o inferno? Em ser um indivíduo opaco, intransitivo, sem interesses culturais, sem inquietudes filosóficas, sem ambições literárias, talvez sem tendências burguesas.

A minha mãe salvou-me? Talvez sim, mas no mesmo instante em que me perdeu. Agiu, pois, como o bisturi eléctrico do meu pai, que feria e cauterizava a ferida ao mesmo tempo. Às vezes sonho com uma escrita que me afunde e me eleve, que me adoeça e me cure, que me mate e me dê vida.»

Juan José Millás, O Mundo
Tradução: Luísa Diogo e Carlos Tavares
Edição: Planeta

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