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A mostrar mensagens de maio, 2011

Ideologia

    No televisor desfilam imagens de uma guerra.    O pai está recostado no sofá, muito atento e calmo. O filho tem os antebraços sobre os joelhos e a cabeça lançada para a frente.     Uma bomba explode e logo atenta no pai, que continua impassível; um discurso inflamado num idioma indecifrável assusta-o, volta a olhar para o pai, porém nada nele mudou; depois, uma salva de tiros; cadáveres pelo chão, uma vala com corpos estropiados, o grande plano de uma mão que agarra um objecto invisível; uma mulher que corre com um bebé nos braços por entre uma nuvem de fumo e pó; e dois soldados que se abraçam em plena batalha.     Treme por dentro, a perturbação intensifica-se.     O pai, esse, continua muito atento e calmo. E a voz que narra o documentário reaparece, tão harmoniosa e cadenciada que parece propor uma aliança com o pai. De certo modo, falam a mesma linguagem - a linguagem dos adultos, pensa.     Passa-lhe pela cabeça reproduzir um gesto violento que observa no televisor. Mas não c

Séneca na mesa-de-cabeceira

  O que mais me agrada em Séneca é o pacto de integridade que estabelece com aquela espécie de vida entre parêntesis que insiste em sobreviver aos séculos.   Uma advertência, contudo:   Não se leve demasiado a sério as palavras que aqui se escrevem, até porque em filosofia não sou versado e dos homens pouco conheço.   Leia-se (isso sim) Cartas a Lucílio , faça-se desse volume companheiro de cabeceira. Logo me dirão se o sono não será mais tranquilo e o despertar mais enérgico.    E se, concluída a leitura, sentirem aquele miasma antigo atravessar o buraco da fechadura, recomecem-na. Celebrem com ela uma amizade. Duradoura, como convém. Serão sempre recebidos de braços abertos. Isso posso assegurar.

Banda sonora #3

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Quando ouvi esta bateria "tocada ao contrário", percebi que queria ser baterista. Como percebi que são mais as pontes do que as paliçadas entre a bateria e a literatura. Eis aqui um breve ensaio sonoro que dispensa adendas.  

Saber usar uma pedra

    Não media o alcance das palavras, portanto não tinha como medir o alcance da sua condição presente.     As palavras, como as pedras, variam na distância e nos danos. Nunca esquecer que uma palavra é sempre uma pedra - a diferença está no alvo: a mão ou o corpo? (Existe sempre a possibilidade de deixá-la cair). No fundo, a fronteira entre aproximar e afastar está na intenção do braço que dá velocidade à pedra. E o que vem antes?      Tempo de meditar, porque nestas palavras ninguém encontrará resposta. 

Efeitos secundários do hábito

    Está sentado na poltrona há dias. Atravessa uma fase muito difícil e não sabe como sair dela.     Encontra-se rodeado de toda a espécie de livros: médicos, filosóficos, e inclusive espirituais. Cansa os olhos investigando as possíveis causas, como as potenciais curas. Todavia, o seu pessimismo é evidente. Cada consulta é a consolidação de uma derrota anunciada.      Encosta-se ao tempo e olha através da janela. Sente-se esgotado, fraco, fecha os olhos, adormece.      Sonha com um homem erguendo os braços ao céu no topo de uma montanha. Atenta no homem: é ele próprio. Ao lado ergue-se um majestoso edifício, repleto de pátios e jardins interiores, e também de figuras muito quietas e pacíficas. Um mosteiro.     Acorda cheio de energia, e de optimismo. Não há como duvidar do destinatário daquela mensagem. O sonho apontara-lhe a cura.     Faz os telefonemas necessários, inteira-se de todos os procedimentos, prepara as malas e parte.     Ei-lo no outro lado do mundo, num mosteiro planta

Cinema #2

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Banda sonora #2

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Uma frase inofensiva

    Ouviu:     A distância entre o tecto e o chão é mental.   Uma frase que o fez pensar. Uma, duas, três, quatro, cinco, ... vezes cuja conta começou a perder.   De mero exercício lúdico rapidamente passou a ponderação séria, e de ponderação séria a obsessão. Transformou-se numa banda sonora contínua, inclusive no sono, que naturalmente foi perdendo qualidade. Na cama, deixara de olhar o tecto - a sua paisagem favorita - porque lhe intensificava a consciência da maldição que aquela frase lhe lançara.    Na procura de uma qualquer iluminação, adoptou um ritual diurno:   Olhava o tecto, depois o chão. Em seguida, percorria com os olhos a parede do tecto ao chão – depressa, muito depressa, porque queria perceber a todo custo. Porém insistia: isto é físico, material. Pegava então numa fita métrica para se tranquilizar. E assim acontecia. Regressava a calma, aquele estado que por esta altura já lhe parecia uma memória distante que ameaçava dissipar-se irreversivelmente. Tra

Cinema #1

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Banda sonora #1

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Compreender a solidão

    Um dia recebeu a visita de um amigo que, intrigado, lhe perguntou:     - Como te dás num espaço assim, tão fechado?     Distraiu-se do quadro que pintava e, após um breve silêncio, respondeu:     - Como não te dás num espaço assim, tão aberto?     O filho, de orelha encostada à porta do atelier, a princípio sentiu-se um tanto confuso com a resposta do pai. Queria compreender, mas, em vez de pensar, continuou de orelha encostada à porta.      No entanto, nem mais uma palavra foi pronunciada. Era como se o atelier tivesse ficado vazio. Até que escutou um ruído. Passos, passos que se aproximavam. Afastou-se da porta e escondeu-se.     O visitante saiu, cabisbaixo e contraído, como se sentisse vergonha. Com tristeza no rosto e fúria nos membros, encaminhou-se para o portão de acesso à rua.     Espreitou o atelier, o pai olhou-o de soslaio.     - O que queres?     - Ficar um bocado no teu espaço fechado. Não me dou neste espaço aberto. Posso?       Não respondeu, e o filho, postado na s

A vida em comunidade

    De dia, o vizinho do lado grunhia, berrava, disparava insultos a um alvo desconhecido. À noite, rosnava com os dentes cravados na almofada.     A vizinha de cima era espancada, ou fingia sê-lo. Já se cruzara com ela nas escadas, cheirava a álcool e era pouco higiénica. Uma ocasião, tentara levantá-la do chão; não quis - preferiu continuar a gemer com a boca desdentada colada ao mármore. Falara com o alegado agressor, que, sem abrir a porta, o ameaçara de morte num tom educado.      A vizinha da frente era puta. Habilitada, acrescente-se: competente nos gemidos e escrupulosa nos tempos.     Havia ainda um traficante de droga - sempre com um cão ridiculamente medroso pela trela - e uns quantos imigrantes ilegais que falavam dialectos complicados.    Ainda assim, não seria descabido afirmar que aquele era o prédio mais pacífico do planeta: ninguém se falava, as portas estavam sempre fechadas, não havia registo de crimes e nunca se ouviam sirenes do INEM.      Bem vistas as coisas, não

Um breve apontamento sobre a contemporaneidade

    O pai educara-o para a agorafobia do espírito. O mesmo é dizer que fora treinado como um animal de circo: para gestos gloriosos, destinados a provocar aplauso e admiração - mas nunca para lá do contorno de uma circunferência bem desenhada.      E dessa circunferência muito se podia conjecturar.     Contudo, tinha para si que a moral de uma nação pesava mais sobre um indivíduo do que a moral privada. Daí que fosse absolutamente mínimo o número de pessoas a quem confiava segredos. Esses ficavam para os bastidores do circo, bem guardados em jaulas.     Até ao dia (que não estava assim tão distante) em que o leão se virasse contra o domador.