A leitura e a indisciplina

Sou um leitor indisciplinado, desarrumado, caótico até. Daqueles a que os autores carregariam o cenho. (Pelo menos eu sentir-me-ia tentado a fazê-lo perante um leitor meu.)  Leio dezenas de livros em simultâneo, perco-lhes o fio, retomo-o, deixo-o em suspenso para me aventurar noutro e mais tarde regressar. Abro os livros a meio, deparo com uma frase feliz e dou por bem gastos os euros que me custaram. E aquele instante basta-me. No entanto, não é um instante que convide ao abandono, pelo contrário: permanece em movimento no espaço da cabeça, como um pensamento inacabado, à espera que a ele regresse. Mas é nesse caos, nessa imensa paisagem de personagens e estilos e tramas que me sinto em casa, um espião de coisas incompletas e transitórias. Afinal, não é isso a vida? 
Como na rua, quando um rosto me prende, e logo a seguir um som se intromete, para instantes depois ser detido pelo diálogo amargurado de um casal. A vida em corrente ininterrupta.
Até descobrir aquele livro que me obriga a parar, como aqueles episódios da vida que nos obrigam a parar. Então, sim, a coisa vai de fio a pavio. (Coetzee, Borges, Roth, Mallamud, Kristóf, Rulfo, e tantos mais.) Não que os restantes não cheguem ao pavio, simplesmente é outra coisa. É coisa do universo da fome, se quisermos. Estar esfomeado diante de centenas de iguarias. Ninguém me poderá censurar por depenicar um pedaço de cada. E por me banquetear durante dias, salvaguardando o estômago de excessos.