Mensagem

    Vasculha o lixo. Desconhece-se o motivo.
    A fome também tem cheiro, ninguém pode duvidar, mas quem quer cheirá-lo? Também há excentricidades - e tudo quanto vem de alguém que vasculha o lixo é merecedor de respeito. E há ainda o que desconhecemos.
    É noite cerrada, mas percebe-se que é ágil. E competente.
    Continua a vasculhar o lixo. O que procura ele?
   Mas nada no lixo lhe convém. Todos os objectos são largados, todos os restos de comida arremessados.
    O que dizer de alguém a quem nem o lixo tem coisas a dar?, pensarão muitos dos que o observam por detrás das cortinas.
    Está agora cercado de restos, analisa-os. Para quê?
    Compaixão - eis o sentimento principal partilhado por quem o observa.
    O homem pára, retira do bolso um isqueiro e pega fogo ao lixo. A chama alastra-se e sobe alto. Aquece as mãos na fogueira (quão bela, a imagem) - mas como evita ele queimar-se?
    Empatia e estupefacção - eis os sentimentos principais agora partilhados por quem o observa. 
    Afasta as mãos, enfia-as nos bolsos e relanceia os olhos às janelas. Desata a rir, muito alto, o riso faz ricochete nas paredes e esmurra-as com renovada força.
    Todos sentem medo, muito medo.
    Depois, abana a cabeça e vai-se embora, deixando atrás de si a fogueira que contamina o ar com fumo tóxico.
    Ainda hoje, passado muito tempo, persiste na rua o hábito de se espiar pela janela o local do incidente, aguarda-se com ansiedade o regresso do homem do lixo para uma explicação.
    No entanto, nunca mais voltou e a explicação continua pendurada numa corda fina (que abana, muito).
    A rua vive agora no pavor e esconde-se atrás das cortinas, esgotando a cabeça com as bizarrias do mundo. As marcas que nela ficaram consomem-na, como se aquele fogo ainda ardesse.
    Correm rumores de que será fechada para evitar a propagação. Enquanto isso não acontece, reza-se.
    «Volta. Volta. Volta.»
    Mas o oxigénio já escasseia.
   
   

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