A Sonata de Kreutzer

«Uma hora depois entrou a ama-seca e informou que a minha mulher estava com um ataque de histeria. Fui lá: soluçava, ria, não conseguia falar, tremia toda. Não fazia teatro, estava mal.
«Pela manhã acalmou-se e, sob a influência daquele sentimento a que chamávamos amor, fizemos as pazes.
«Depois da reconciliação, quando lhe confessei nessa manhã que tinha ciúmes de Trukhatchévski, ela não se embaraçou minimamente e até se riu de modo natural. Só a mera possibilidade de se apaixonar por um homem daqueles, dizia ela, lhe parecia já muito estranha.
«- Será possível alguma mulher decente sentir alguma coisa por aquele homem além do prazer da música? - disse ela. - Se quiseres nunca mais o vejo. Mesmo no domingo, apesar de termos convidado toda a gente. Escreve-lhe a dizer que estou adoentada, e acabou-se. O mais desagradável, porém, é alguém pensar, sobretudo o próprio, que ele é um homem perigoso. Ora, eu sou demasiado orgulhosa para permitir que pensem isso.
Repare que ela não mentia, acreditava no que estava a dizer; tinha a esperança de provocar em si mesma, com essas palavras, o desprezo que queria ter por ele e, assim, se defender dele; mas não conseguiu. Estava tudo contra ela, sobretudo a maldita música. Assim terminou o episódio e, no domingo seguinte, reuniram-se os convidados e eles voltaram a tocar juntos.»

Leo Tolstói, A Sonata de Kreutzer
Edição: Relógio d'Água
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra

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