Efeitos secundários do hábito
Está sentado na poltrona há dias. Atravessa uma fase muito difícil e não sabe como sair dela.
Encontra-se rodeado de toda a espécie de livros: médicos, filosóficos, e inclusive espirituais. Cansa os olhos investigando as possíveis causas, como as potenciais curas. Todavia, o seu pessimismo é evidente. Cada consulta é a consolidação de uma derrota anunciada.
Encosta-se ao tempo e olha através da janela. Sente-se esgotado, fraco, fecha os olhos, adormece.
Sonha com um homem erguendo os braços ao céu no topo de uma montanha. Atenta no homem: é ele próprio. Ao lado ergue-se um majestoso edifício, repleto de pátios e jardins interiores, e também de figuras muito quietas e pacíficas. Um mosteiro.
Acorda cheio de energia, e de optimismo. Não há como duvidar do destinatário daquela mensagem. O sonho apontara-lhe a cura.
Faz os telefonemas necessários, inteira-se de todos os procedimentos, prepara as malas e parte.
Ei-lo no outro lado do mundo, num mosteiro plantado no topo de uma montanha. Aqui irá aperfeiçoar-se e pôr fim aos seus males, está convencido.
E, de facto, assim acontece. Após uma longa temporada de meditações, ensinamentos e orações, dá por si ao lado do mosteiro, no topo da montanha, erguendo os braços ao céu. Um homem leve, luminoso, pleno. Um homem, em suma, curado.
É chegada, pois, a altura do regresso.
Entra em casa, pousa as malas, e apressa-se a arrumar nas estantes as pilhas de livros que acumulara. O seu único desejo é sentar-se na poltrona e experimentar os novos olhos, observando através da janela.
Senta-se por fim e eis que toda aquela chusma de coisas más regressa. Tenta levantar-se, mas não consegue. Está preso. Esforça-se por resistir aos pensamentos antigos que agora o dominam, mas de nada serve. Os pensamentos acabam por lhe comer o que a tanto custo alimentara. Não havia como negá-lo, voltara ao que era: um homem vazio.
Esquecera-se de que todas as viagens aconselham o transporte de coisas importantes que não cabem em malas - como noções básicas de geografia.
É que (no fundo, todos o sabemos) o hábito tem uma inclinação sádica, cria raízes, estabelece pactos com os cheiros e, portanto, afeiçoa-se aos tecidos.
Não mais saiu da poltrona - e escusado será dizer que haveria de morrer em breve, vítima do veneno lento da resignação.