Uma frase inofensiva

    Ouviu: 
  A distância entre o tecto e o chão é mental.
  Uma frase que o fez pensar. Uma, duas, três, quatro, cinco, ... vezes cuja conta começou a perder.
  De mero exercício lúdico rapidamente passou a ponderação séria, e de ponderação séria a obsessão. Transformou-se numa banda sonora contínua, inclusive no sono, que naturalmente foi perdendo qualidade. Na cama, deixara de olhar o tecto - a sua paisagem favorita - porque lhe intensificava a consciência da maldição que aquela frase lhe lançara. 
  Na procura de uma qualquer iluminação, adoptou um ritual diurno:
  Olhava o tecto, depois o chão. Em seguida, percorria com os olhos a parede do tecto ao chão – depressa, muito depressa, porque queria perceber a todo custo. Porém insistia: isto é físico, material. Pegava então numa fita métrica para se tranquilizar. E assim acontecia. Regressava a calma, aquele estado que por esta altura já lhe parecia uma memória distante que ameaçava dissipar-se irreversivelmente. Tratava-se, todavia, de uma espécie de calma química, de duração previsível (estabelecera um padrão cronometrando-a).
  O ritual teve, portanto, como único resultado disciplinar ainda mais aquela obsessão. E, com o acréscimo de disciplina, vieram a velocidade, a frequência e a intensidade.
  Sucede, contudo, que numa das noites que se seguiram, readquiriu coragem e olhou o tecto. Fazendo frente à urgência que lhe pulsava no peito, soergueu-se e atentou na sanca. Depois, os seus olhos foram descendo, como se acompanhando um trajecto invisível.
  A mulher, deitada ao lado, disse:
  - Estás bem?
  Mantivera-se acordada, observando-o sem que disso se tivesse apercebido.
  Virou a cabeça na direcção dela, sobressaltado.
  - Estás a olhar para aquela parede há uma hora.
  Deixou-se cair novamente na cama e fitou o tecto. Ao cabo de segundos, estava calmo. Adormeceu. 
  Finalmente percebera.



P.S. : O Blogger, vá-se lá saber porquê, eliminou-me este texto que publicara anteriormente. Como não tinha nenhum "back-up" do mesmo, aqui fica uma versão feita com base na memória e nalgumas notas que tinha tirado.